Grafietti: ‘Brasileirão ficará cada vez mais como o Inglês. Seis na elite, o meio e o bafo na luta para não cair’

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Grafietti defende a criação da liga de clubes brasileiros e acredita que ela não demorará a sair

Grafietti defende a criação da liga de clubes brasileiros e acredita que ela não demorará a sair DIVULGAÇÃO/CONVOCADOS

Dentro de campo, o futebol brasileiro pega fogo, com o campeonato nacional na metade, o início da reta final da Libertadores e da Copa do Brasil e o aquecimento para a Copa do Mundo do Catar, a ser disputada entre novembro e dezembro próximos.
Fora das quatro linhas, o mais completo e detalhado estudo sobre a situação dos principais clubes do esporte mais amado do país, e suas relações com a sociedade, é o Relatório Convocados – Finanças, História e Mercado do Futebol Brasileiro. O trabalho é uma parceria entre a XP Investimentos e a empresa de consultoria Convocados, dedicada à indústria do futebol, que tem em seu time o ex-zagueiro Roque Júnior, campeão mundial com a Seleção Brasileira em 2002.

O R7 ENTREVISTA conversou com o organizador do estudo, Cesar Grafietti. Economista com mais de 25 anos de experiência no mercado financeiro, torcedor do São Paulo, consultor da CBF para fair play financeiro, Grafietti listou, de Milão, na Itália, onde mora há quatro anos, vários dados impressionantes e úteis para a compreensão da realidade vivida na maior paixão esportiva dos brasileira. E também vários dados saborosos sobre a relação cultural e de comportamento do torcedor com seu clube. Um verdadeiro gol de placa. Acompanhe:

O relatório é rico em dados, análises e curiosidades deliciosas. Vamos a eles?
Cesar Grafietti – Sim. Alguns exemplos. Os 20 clubes da Série A tiveram receita de R$ 6,6 bilhões em 2021. O maior faturamento foi do Flamengo, com R$ 1,054 bilhão, aproximadamente 16% do total, seguido pelos R$ 911 milhões do Palmeiras, favorecido por dois prêmios seguidos de título da Libertadores no mesmo ano, por causa do atraso de uma das finais na pandemia. A concentração de faturamento nesses dois clubes é alta. Em 2021, eles levaram praticamente 30% do total – 29,7% para ser exato -, três a cada dez reais de tudo.

E os salários?
A Série A gastou praticamente metade do bolo, R$ 3,4 bilhões, com salários, e R$ 832 milhões em contratações de atletas. Os clubes da primeira divisão possuem dívida total de R$ 9,2 bilhões. A série B faturou R$ 900 milhões. Três a cada quatro brasileiros, 75%, têm o futebol como esporte favorito. O mercado potencial de apostas ligadas ao futebol no Brasil está calculado em R$ 25 bilhões. Por isso estamos vendo os investimentos pesados neste setor no País.

Oitenta e oito por cento dos brasileiros torcem para algum time: 24% para o Flamengo, 18% para o Corinthians, 11% para o São Paulo e 10% para o Palmeiras. Em relação aos times do exterior, 36% torcem para um deles: 28% para o Barcelona, 24% para o Real Madrid e 17% para o Paris Saint-Germain, o PSG

CESAR GRAFIETTI

Como se dividem as torcidas?
Oitenta e oito por cento dos brasileiros torcem para algum time: 24% para o Flamengo, 18% para o Corinthians, 11% para o São Paulo e 10% para o Palmeiras. Em relação aos times do exterior, 36% torcem para um deles: 28% para o Barcelona, 24% para o Real Madrid e 17% para o Paris Saint-Germain, o PSG. Em 2021, estavam em atividade 672 clubes no Brasil. O recorde foi em 2009, com 692.

E o perfil do torcedor?
Sobre idade, 46% dos torcedores estão na faixa dos 16 aos 34 anos e 42% dos 35 aos 54 anos. Cruzeiro e Flamengo possuem as torcidas mais jovens. Internacional e Fluminense, as mais velhas. Sessenta e cinco por cento dos torcedores acompanham seu time pela tevê aberta, 62% pelas redes sociais, 53% online na internet, 46% por tevê de assinatura e 25% por rádio.

Uma das partes mais saborosas do estudo é a que relaciona torcida e consumo.
Verdade. Vamos a alguns casos. A torcida que mais consome cerveja, com 84%, é a do Santos. Na média, 69%. Oitenta e cinco por cento consomem refrigerante, 76% possuem cartão de crédito e 94% têm ao menos uma conta bancária. Quem tem mais chuteira é o amante do Internacional, 44% do total. Os flamenguistas são os que mais apostam, 35% da torcida, seguidos pelos palmeirenses, com 21%. Torcedores do Atlético-MG e do Palmeiras são os que mais se lembram das marcas patrocinadoras de seus times, com 84%. Na média, 72% se recordam. Corintianos são os que mais usam jogos eletrônicos, com 59%.

 

 

 

A torcida que mais consome cerveja, com 84%, é a do Santos. Na média de todas, 69%. Oitenta e cinco por cento consomem refrigerante, 76% possuem cartão de crédito e 94% têm ao menos uma conta bancária. Quem tem mais chuteira é o amante do Internacional, 44% do total. Os flamenguistas são os que mais apostam, 35% da torcida

CESAR GRAFIETTI

Torcidas do Flamengo e do Cruzeiro são as que possuem mais jovens

Torcidas do Flamengo e do Cruzeiro são as que possuem mais jovens Gilvan de Souza/Flamengo (05.06.2022)

 

 

 

Qual é a competição mais amada e valorizada
O Brasileirão, com 60%, seguido de perto pelos 58% da Libertadores, 57% da Copa do Brasil e 54% da Copa do Mundo. Um dado curioso, surpreendente para muitos, é que apenas 31% elegeram o Mundial de Clubes como disputa predileta, atrás dos 36% da Liga dos Campeões e até da Copa América, com 33%.

O trabalho apresenta também alguns números sobre o futebol feminino.
Isso. Dezesseis clubes femininos disputam a Série A de abril a outubro, 94% deles vinculados a clubes e associações com futebol masculino. A idade média das atletas é de 24 anos. A média de público na Série A em 2021 foi de apenas 400 pessoas. Como se vê, o futebol feminino precisa evoluir muito e há um campo vasto para isso. Os clubes devem gerir o futebol feminino de forma independente, com estrutura própria de formação de base, marketing e desenvolvimento comercial.

O que é preciso fazer para diminuir o atraso no futebol brasileiro em termos de estrutura e organização?
Vamos, resumidamente, a alguns pontos. Transformar os clubes em empresa, para fortalecer o planejamento e os métodos modernos de gestão. E diminuir as influências políticas.  e no acesso a metodologias modernas de gestão. Expandir o leque de licenciamento em todas as séries, separar claramente profissionais de amadores, repensar o calendário e, importante, implantar o fair play financeiro, para premiar os clubes que controlam suas despesas e gastam com equilíbrio e responsabilidade. E, claro, montar a liga, para viabilizar o tratamento dos clubes e competições como produtos.

É preciso transformar certos clubes em empresas, diminuir as influências políticas, que impedem o acesso a metodologias modernas de gestão, expandir o licenciamento em todas as séries e separar claramente profissionais de amadores. E também repensar o calendário, implantar o fair play financeiro e montar a liga, para viabilizar o tratamento dos clubes e competições como produtos

CESAR GRAFIETTI

Como funciona o fair play financeiro?
É o controle para buscar o equilíbrio financeiro de cada clube, colocando seus custos e despesas abaixo ou no limite da arrecadação em cada ano. Em resumo, gastar menos ou, no máximo, a mesma coisa do que se arrecada, para não rolar atrasos de pagamento nos anos seguinte, gerando uma dívida impagável. É preciso entender bem: não é limitar todos os clubes ao mesmo valor, e sim definir um percentual da receita de cada clube para gastos – e as receitas, claro, são diferentes.

Não é liberar o mesmo valor de gasto em dinheiro, em números absolutos, para todos os clubes, independentemente da receita de cada um deles, e sim colocar cada desembolso dentro, e não acima, da sua faixa de arrecadação, é isso?
Exatamente. A ideia é a seguinte: se o limite de gasto permitido no fair play financeiro for de 90% da arrecadação anual, por exemplo, o clube com receita total de 100 poderá desembolsar 90. E o outro, com faturamento de 500, poderá gastar 450. A partir de 2019, ao lado dos clubes e com o apoio da CBF, eu desenvolvi o modelo e os testes de um fair play financeiro para o futebol brasileiro, baseado em índices econômicos e financeiros. O lançamento formal ainda não foi feito por causa da pandemia e do grande desafio político de convencer os dirigentes dos clubes a iniciar o relacionamento com os controles externos. Mas espero que os primeiros efeitos desse projeto comecem a ser sentidos em 2023.

Fair play financeiro é o controle para buscar o equilíbrio financeiro de cada clube, colocando seus custos e despesas abaixo ou no limite da arrecadação em cada ano. Em resumo, gastar menos ou, no máximo, a mesma coisa do que se arrecada, para não rolar atrasos de pagamento nos anos seguinte, gerando uma dívida impagável. É preciso entender bem: não é limitar todos os clubes ao mesmo valor, e sim definir um percentual da receita de cada clube para gastos – e as receitas, claro, são diferentes

CESAR GRAFIETTI

Em outro ponto interessante do trabalho, vocês fazem o seguinte exercício: se os principais clubes brasileiros investissem 20% da receita média dos últimos quatro anos no pagamento das dívidas, quanto tempo cada um deles levaria para zerar o saldo devedor? Explique.

É isso mesmo. Se esse percentual fosse adotado com rigor por todos os clubes devedores, o Atlético-MG, que tem a maior dívida, R$ 1,315 bilhão no fechamento do ano passado, levaria 21 anos e meio para zerar. O Corinthians, com 963 milhões, levaria dez anos e meio, e o Vasco, com R$ 710 milhões, quinze anos e meio. O menor prazo seria o do Atlético-GO, menos de um ano, ou seja, precisaria investir menos de 20% de sua receita média nos últimos quatro anos.

O futebol brasileiro terá uma liga administrada pelos clubes, como ocorre nos países europeus?
Ela vai sair. É inevitável. A questão, hoje, é saber quando. Está claro que a liga é fundamental para organizar a estrutura do futebol, negociar bem os contratos de direito de transmissão, criar identidade visual e de marca, organizar o calendário, enfim, vender melhor o produto futebol brasileiro. O futebol está envolvido em um ambiente político e a negociação é necessária, mas sou otimista.

Por que?
Os pagamentos por direitos de transmissão, por exemplo, parecem muito próximos do teto, mas poderiam aumentar entre dez e vinte por cento em poucos anos. Conquistar espaço em mercados internacionais poderá render entre duzentos e quatrocentos milhões de reais a mais. Se esse caminho for seguido com seriedade, calculo que a receita total dos clubes poderá crescer entre 15% e 30% em quatro anos. As melhores ligas mais do que triplicaram suas receitas em 15 anos. A inglesa e a espanhola duplicaram no mesmo período. Esse é o ponto: a gente tem um potencial imenso de crescimento mas, desestruturados como estamos hoje, não conseguimos explorar nem 20% dele.

SAFs como a do Cruzeiro, com Ronaldo, serão úteis para profissionalizar futebol, diz o consultor

SAFs como a do Cruzeiro, com Ronaldo, serão úteis para profissionalizar futebol, diz o consultor Gustavo Aleixo/Cruzeiro

Como você está vendo a chegada das Sociedades Anônimas do Futebol, as SAFs, nos clubes brasileiros?
Acho positivo. Você pode ter bons clubes associativos e também boas SAFs. Um modelo pode ser bom para o clube A e nem tanto para o B. O importante, o que define, é apostar no modelo correto e fazer boa gestão. No Brasil, o modelo associativo funciona mal na suprema maioria dos casos é político. A gestão é trocada a cada três, quatro anos, anulando a possibilidade de planejamento. Onde estou hoje, onde estarei daqui a dez anos. Isso, fundamental para qualquer organização, fica inviável no modelo da maioria dos clubes brasileiros. Por isso, acho que a SAF fará bem aos clubes. E, a reboque, ainda traz dinheiro para pagar dívidas.

Os valores iniciais anunciados pelas três primeiras SAFs, de Cruzeiro, Botafogo e Vasco, foram justos?
É difícil ter uma base mais concreta neste início de criação do mercado. Mas os novos donos, que investirão inicialmente, pelos valores anunciados, R$ 400 milhões no Cruzeiro e no Botafogo, R$ 700 milhões no Vasco, na verdade mais pagarão dívidas do que qualquer outra coisa, e isso, para o setor, é positivo. E trarão credibilidade para novos financiamentos e créditos, por exemplo. As SAFs podem trazer mais pragmatismo na gestão, evitando aquele jogo do dirigente, que diz que o time é da torcida mas, no fundo, está interessado apenas em agradar seus sócios, o interior do clube, arrumar a quadra de tênis, a piscina, o bar, para se manter no poder. Tivemos essas três primeiras SAFs imediatamente, mais urgentes, no Cruzeiro, Vasco e Botafogo. Poderemos ter mais uma ou duas até o final de 2022, com a consolidação do processo em quatro ou cinco anos.

Fizeram essas três primeiras SAFs imediatamente, mais urgentes, no Cruzeiro, Vasco e Botafogo. Poderemos ter mais uma ou duas até o final de 2022, com a consolidação do processo em quatro ou cinco anos. Mas não apostaria que todos os clubes importantes virarão SAFs.

CESAR GRAFIETTI

Acredita que todos os clubes importantes vão virar SAFs?

Não apostaria nisso. Corinthians e Flamengo, por exemplo, acho difícil. Por questões regionais, de pertencimentos, alguns outros clubes vão permanecer como associação. Mas poderão encontrar outros bons modelos de gestão. Abrir capital em bolsa, vender boa parte das ações mantendo o controle acionário, estabelecer outros tipos de parceria, enfim. O modelo alemão, por exemplo, é interessante. Lá, é permitido vender no máximo 49% das ações em bolsa, para que o controle permaneça sempre com os clubes. O importante, em qualquer modelo, é ter responsabilidade. Investidor não coloca dinheiro na mão de dirigente de clube ou de qualquer outra pessoa ou grupo sem condição de acompanhar e controlar minimamente o andamento das finanças e da gestão.

A nova realidade criará uma subdivisão de elite na Série A?

Acredito que sim. O Brasileirão já está ficando, e ficará cada vez mais, parecido com o campeonato inglês neste aspecto. Seis ou sete clubes mais fortes, um segundo grupo, com um ou outro componente brigando eventualmente pelo quarto, quinto ou sexto lugar, e, depois, a turma do bafo, que briga para não cair.

Você está confiante?
Não sei se faremos todo o dever de casa corretamente, mas, como se vê, é possível fazer o caminho. Há espaço para isso no masculino e no feminino. Tenho esperança.

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