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Foto: Senado

Fonte: Nilson Gomes-Carneiro/Jornal Opção

A foto saiu imensa nas páginas de jornais, que naqueles anos 1980 eram mesmo muito maiores. Em alguns, na capa. No plenário da Câmara dos Deputados, um manifestante do que antigamente era chamado de esquerda tentou agredir o presidente da União Democrática Ruralista, o médico Ronaldo Caiado. O atentado teria a marca da covardia, pelas costas, enquanto o dirigente classista percorria o local a convite de parlamentares ligados à agropecuária. Escapou por pouco.

Antes dos seguranças oficiais do Legislativo, quem tomou a frente foi outro líder ruralista, também na faixa dos 30 anos, que tomou a frente, o esquerdista tentou atingi-lo, mas antes recebeu um soco. Apenas um. Tombou. Caiu duro. O corpo estendido no chão ninguém mais sabe de quem é, foi reanimado pela turma do deixa-disso, voou célere para o anonimato. O dono do soco era José Eduardo Fleury, que morreu em Goiânia neste 14 de outubro.

Fleury, que os amigos chamavam de Zebu, acompanhou Ronaldo Caiado por todo o Brasil na formação da UDR. Depois, fizeram dupla durante a Assembleia Constituinte, na defesa do que hoje é a salvação da lavoura: a própria lavoura. Estavam juntos no 10 de maio de 1988, quando foi votada a questão da propriedade. Primeira vitória impressionante da direita.

Caiado comemorou, com Fleury do lado: “A Lei Áurea dos produtores rurais chegou antes de 13 de maio, nossa abolição aconteceu na Constituinte, com a garantia de que as terras produtivas são intocáveis. Agora o País vai produzir em paz, com os agricultores livres da tutela dos tecnocratas, dos corruptos, dos demagogos e de outros que se utilizavam dos ruralistas, sem nada dar em troca”.

Então, foi surpresa para zero integrante do PFL quando, em 2002, o já deputado federal no 4º mandato apresentou Fleury para suplente de Demóstenes Torres, então pré-candidato ao Senado.

Fleury fazia história como presidente do Sindicato Rural de Quirinópolis. Um sindicalista 100% diferente. Em vez de consumir dinheiro público, ele arrecadava com os colegas e colaborava com o Estado. A festa agropecuária tinha shows com os maiores artistas da época. Cofres oficiais? Alheios aos cachês. Para encurtar a conversa, Fleury bancava a segurança das fazendas da região — nem ouse pensar em jagunços.

Sob a liderança de Fleury, os produtores rurais se reuniam e todos os anos renovavam a frota da Polícia Militar. Combustível? Por conta deles. Alimentação? Idem. Fleury cuidava da formação profissional de proprietários de terra, qualquer tamanho de terra, e seus funcionários. Era fã de tecnologia. Gostava de política. Só que nunca havia pensado em se candidatar. Tinha uma vida maravilhosa com a mulher, Jacintha, os filhos e seu rebanho — e que rebanho. Décadas depois, quando arrendou a maior parte da fazenda para plantação de cana, mandou desmontar cerca e currais e levar tudo para o amigo grandalhão que capitaneou a luta pelos produtores: Ronaldo Caiado.

Fleury amava algo além da família e dos assuntos rurais, a velocidade. Na juventude, havia sido piloto de automóvel. Foi aprovado numa seletiva para trabalhar em banco público e se mudou para o Sudoeste goiano. Porém, não deixou de correr. Numa dessas, o carro ficou numa aquaplanagem, rodou, capotou ladeira abaixo e foi resgatado semimorto no pé do morro. Nome do ortopedista que o socorreu: Ronaldo Ramos Caiado, especializado na França em reconstituir coluna cervical. A de Fleury havia se estilhaçado. Corria risco de vida. Ficou entre ela e a morte. Foi salvo. Porém, nunca mais caminhou. Nem deixou quem dirigia para ele passar dos 100 por hora em seu Santana, o veículo modelo antigão que preferia a qualquer Ferrari.

Estava fora da cadeira de rodas, deitado, com violenta depressão, quando recebeu de seu médico a convocação para tentar o Senado. A busca pelo voto o livrou da doença. Seria reeleito em 2010 também na chapa de Demóstenes e chegou ao Senado antes do amigo de UDR: em 2014, Wilder Morais, que substituiu Demóstenes, se licenciou e Fleury assumiu. Caiado só seria senador a partir de fevereiro do ano seguinte.

Fleury soube aproveitar cada minuto do tempo na cadeira. Ficava no gabinete a semana inteira e semana inteira de parlamentar federal às vezes não tem dia nenhum, a tal sessão remota, inexistentes à época. Os mais assíduos ficam por lá às terças e quartas, quando há mais compromissos. Hás os TQQ, que só vão para seus Estados nas quintas à tarde. Ficar de segunda a sexta, somente o Fleury e mais ninguém.

Outro marco de sua passagem foi a mobilidade das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Goiás havia tido outro senador cadeirante, o inteligentíssimo Iram Saraiva, que morreu em 2020, mandato de 1987 a 1994, quando chegou a ministro do Tribunal de Contas da União. Outros paraplégicos e tetraplégicos passariam por lá, nenhum defensor dos direitos com a gana de José Eduardo Fleury. Para usar a tribuna. Para usar banheiros. Para estacionar. Para ter acesso ao gabinete. O Senado foi um antes e outro depois dos quatro meses de Fleury.

Tinha hábitos simples

Fomos amigos. Seu apartamento em Goiânia era na rua em que moro, apesar de ele preferir ficar no Hotel Maione, em frente ao Hugo e ao Ipasgo, na Rua 90. A família se preocupava nas visitas a ele porque começávamos a conversar à tarde e só parávamos quando chamados para o café, na manhã seguinte.

Fleury sempre morou na fazenda — aliás, ele e Wilder Morais alcançaram o Senado residindo na zona rural e nela continuaram. Gostava tanto de ser anfitrião que construiu chalés, como nos hotéis de luxo. Tinha até brinquedoteca e minicastelo para as crianças. Num desses papos intermináveis, me deu a tarefa de escrever sua biografia. Nada de preocupação com data: previa o fechamento com a cura. Ia realizar o desejo de voltar a dirigir e, depois, a andar. Acreditava piamente na ciência. Por último, nas células-tronco. Meu amigo não foi beneficiário. Que a cura virá, não tenha dúvidas, pois ele não tinha. Essa sua luta merecia mais páginas de jornal que nocautear um covarde no plenário da Câmara dos Deputados.

O velório será a partir das 19h30 desta segunda-feira, 14, e o sepultamento, às 10 horas de terça-feira, ambos no Vale do Cerrado, na saída para Trindade. O cemitério é do grupo de Wilder Morais, que Fleury substituiu nos quatro meses que mudaram o Senado.

Nilson Gomes-Carneiro é advogado, jornalista e escritor. É colaborador do Jornal Opção.

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